4. Inspirando-se no trabalho da professora Cláudia: leitura de poemas, uso de outras linguagens e empréstimos poéticos
A experiência da professora Cláudia pode ser reproduzida com a sua turma, tanto para que as crianças tenham acesso à boa poesia de Mário Quintana como à de outros bons poetas que escreveram para o universo infantil.
Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias, Fagundes Varela, Vicente de Carvalho, Solano Trindade, Luís Guimarães Júnior, Juvenal Galeano, o poeta português Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Henriqueta Lisboa, Cecília Meireles, José Paulo Pais, Olavo Bilac, Arnaldo Antunes, Vinícius de Morais, Manuel de Barros e tantos outros bons poetas também escreveram poesias para crianças e ousaram partilhar com elas o imaginário infantil.
Eles produziram poemas ricos, repletos de imagens encantadoras, com muita qualidade artística e, ao escrever para o público infantil, não cederam à simplificação ou moralidades, mas apostaram ora no humor, ora no ritmo, fazendo uso de imagens fantásticas que são familiares às crianças, acreditando que elas são capazes de apreciar a boa poesia.
Você pode estender o universo da produção poética aos poetas locais (antigos ou modernos). Entre os da atualidade há vários espalhados nos municípios brasileiros que embora produzam boa poesia não encontram espaço para a publicação impressa de sua produção. Hoje, a internet proporciona-nos o acesso a inúmeros sites de poesia e páginas pessoais de bons poetas (consulte algumas sugestões no item 5. Para saber mais).
O importante é que a poesia não seja pretexto, mas faça parte do contexto da aprendizagem, ou seja, ler, conhecer e apreciar a boa poesia deve ser parte importante dos objetivos do projeto.
A poesia pode ser ponto de partida também para discutir conceitos históricos, geográficos, noções de pertencimento, identidade. Vejamos dois exemplos de poetas que dedicaram poemas às suas cidades natais.
O primeiro é Ribeiro Couto , dele selecionei duas partes do poema Santos:
SANTOS
Nasci junto do porto, ouvindo o barulho dos embarques
Os pesados carretões de café
Sacudiam as ruas, faziam tremer o meu berço.
Cresci junto do porto, vendo a azáfama dos embarques.
O apito triste dos cargueiros que partiam
Deixava longas ressonâncias na minha rua.
Brinquei de pegador entre vagões das docas,
Os grãos de café, perdidos no lajedo,
Eram pedrinhas que eu atirava noutros meninos.
As grades de ferro dos armazéns, fechados à noite,
Faziam sonhar (tantas mercadorias!)
E me ensinavam a poesia do comércio.
Sou bem teu filho, ó, cidade marítima,
Tenho no sangue o instinto da partida,
O amor dos estrangeiros e das nações,
Ó, não me esqueças nunca, ó, cidade marítima,
Que eu te trago comigo por todos os climas
E o cheiro do café me dá tua presença.
(...)
Sobre a cidade a tarde cai de manso.
Começam a acender-se luzes mortiças
Nos longos mastros dos transatlânticos ancorados.
Como é longo o cais envolvendo a cidade inteira
Com os chatos armazéns e os guindastes em fila!
Como é longo o cais junto às águas oleosas!
Presos à amurada baloiçam botes vazios.
Vêm conversas confusas de marinheiros
Dentre vagões atulhados de carvão de pedra.
Nossa Senhora do Monte Serrat protege o comércio.
A igrejinha branca lá está, no alto do morro,
Abençoando a fadiga dos homens suarentos.
Junto a estas águas oleosas nasci.
Nasci para sonhar o bem difícil das viagens,
O encanto triste dos amanhãs do exílio.
O apito imenso das sereias, nas partidas,
Foi a música maravilhosa dos meus ouvidos de criança.
Ó transatlânticos com bandeiras enfeitadas,
Não é verdade que viestes para levar-me?
Publicado no livro Um Homem na Multidão (1926). In: COUTO, Ribeiro. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960.
Todo poema é uma verdadeira ode à cidade portuária aonde o poeta nasceu. O poema Santos é repleto de referências da infância de Ribeiro Couto próxima ao cais, da paisagem marítima e dos morros da cidade, da padroeira, dos armazéns, dos transatlânticos...
Quintana também tem um belíssimo poema dedicado à cidade que adotou para viver e para a qual ele sempre mostrou um olhar generoso: Porto Alegre. Vamos conhecê-lo:
O mapa
Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
(E nem que fosse o meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...
Ha tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Ha tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E ha uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...
(QUINTANA, Mario.
Para Quintana, que conheceu a cidade como seu próprio corpo (os diferentes matizes das pinturas dos prédios as dores das ruas, mesmo das que desconhece...), Porto Alegre é tão querida que, em O mapa ele expressa seu desejo de nela ser enterrado.
Em 1987, Quintana concedeu uma entrevista ao também poeta e gaúcho de Jaboatão, Lau Siqueira, onde reafirma seu amor por Porto Alegre. Quando questionado sobre as mudanças da cidade ao longo dos 80 anos vividos pelo poeta, ele respondeu:
"Olha, naturalmente o que mudou foi a arquitetura, não é? Eu vejo sempre uma cidade dentro da outra e lembro aquela cidade antiga. Mas pra me lembrar dela eu tenho que fechar os olhos (risos). Porto Alegre, antigamente, era muito mais calma. Não havia tantos assaltos, tanta violência... eu nasci no tempo das vacas gordas. Antes, o leiteiro deixava o leite na porta de casa e ninguém roubava. Hoje roubam até as galinhas dos despachos. Os tempos mudaram, os costumes, mas a vida continua a mesma. Eu não sou como aqueles velhos que dizem: "Ah, os bons velhos tempos..." eu tenho vontade de dizer para eles: "Olha seu moço... seu moço, não, seu velho. Os tempos são sempre bons, o senhor é que não presta mais... (risos)."
Lau Siqueira entrevista Mário Quintana, Jornal O Norte, 25 de janeiro de 1987.
Ambos os poemas permitem trabalhar com as crianças os marcos da sua localidade numa perspectiva histórica em relação: às edificações e/ou monumentos, por exemplo. Permitem também a aproximação de conceitos geográficos importantes: noções de clima, vegetação e relevo que caracterizam a paisagem da cidade onde vivem.
Se houver poetas locais que se disponham a conversar com as crianças, não deixe de aproveitar esta chance. Reserve um dia para o encontro para que ele fale de sua poesia, suas motivações e, claro, para que declame alguns de seus poemas.
Ler, ouvir, declamar um poema e apreciá-lo com toda a intensidade possível são ações de humanização, sensibilização diante da arte. Assim, no trabalho de leitura e apreciação dos poemas destacados como nos demais que você selecionar para apresentar à turma, declame-os, valorizando seu ritmo e sonoridade. Capriche nas pausas, nas ênfases, enfim, dê dramaticidade à sua leitura, destacando as metáforas e as surpresas prazerosas proporcionadas por esses textos literários.
Converse com as crianças sobre as suas sensações diante do que leram e ouviram.
Se necessário, esclareça algumas passagens dessas belas declarações de amor dos poetas às cidades em que viveram ou nasceram, assim como sobre as temáticas tratadas nos demais poemas selecionados para o trabalho com a turma.
Estimule os alunos a procurarem no dicionário o significado das palavras que desconhecem e discuta com eles quais, entre os diferentes significados encontrados, são mais adequados ao contexto.
No poema de Quintana, por exemplo, o termo anatomia, tem significados na Biologia, na Medicina etc. e, em sentido figurado, significa o exame detalhado da forma, da estrutura dos elementos que compõe algo. Assim, o poeta dispõe-se a observar o mapa de Porto Alegre minuciosamente, para descobrir os detalhes da cidade. O significado mais comum da palavra nuança se aplica à idéia de gradação no contexto do poema, significa tonalidade, diferença sutil entre as cores (o poeta enxerga os diferentes contrastes, os diferentes matizes das paredes das edificações da cidade).
Outra atividade interessante é pedir que as crianças ilustrem os poemas. Estimule o uso de diferentes materiais e técnicas.
Os poemas também podem ser musicados a partir de uma melodia baseada em músicas conhecidas ou não. Outra dica para o trabalho com o ritmo dado pelos poetas às suas composições é fazer uso de instrumentos de percussão na leitura em voz alta dos poemas. Se você ou outro/a professor/a de sua equipe tiverem conhecimento de linguagem musical, podem registrar os resultados em partitura caso contrário, utilize um gravador/fita cassete. Você certamente irá se surpreender com os resultados.
Você também pode apresentar acrósticos para as crianças e realizar uma oficina de produção deste tipo de poema com temáticas relacionadas ao cotidiano infantil, por exemplo:
Beijo doce
Alma clara
Lambo os lábios
Amo a bala!
(Olegário Schmitt)
Pus meu sonho
Inacessível
Preso a um fio
Alto voava
(Olegário Schmitt)
Bom mesmo é
Inventar as rodas
Com o arco-íris
Iluminar com
Cores da
Lua a direção
Enquanto a palavra
Também pede
Assento no chão
(Lau Siqueira)
Outro trabalho interessante e que funciona bastante com as crianças são as paráfrases ou 'empréstimos poéticos'.
"(...) Para facilitar a criação de poemas, para as crianças, é produtivo convidá-las a fazer empréstimos da poesia, isto é, tomar por base algum poema que conheçam e recriá-lo, respeitando sua estrutura, ritmo e rima, mas modificando seu conteúdo. Para a realização dessa atividade, sugerimos os seguintes passos:
leia poesias para seus alunos com freqüência, ou faça-os ouvir gravações de diferentes autores
organize sessões de leitura e escrita de poemas, durante as quais os alunos escolhem aqueles de que mais gostam e depois os copiam e lêem ou recitam para seus colegas
peça-lhes que se preparem para ler ou para recitar, lendo várias vezes os poemas escolhidos
convide-os para assistir a apresentações de poesias e entrevistar um poetista ou poeta, quando se apresentar a oportunidade
mostre um modelo de empréstimo poético ..."
CONDEMARÍN, Mabel GALDAMES, Viviana MEDINA, Alejandra. Oficina de linguagem: módulos para desenvolver a linguagem oral e escrita. São Paulo: Moderna, 1997.
Partes do poema Santos ou do poema O Mapa podem ser ótimos pontos de partida para a atividade de empréstimos poéticos, pois possibilitam que as crianças apropriem-se da idéia central desses poemas (a descrição da cidade do ponto de vista pessoal do poeta) e possam elas próprias também 'desenharem' a sua cidade na forma de poesia.
Nas séries iniciais como nos sugere Condemarín, Galdames e Medina, um procedimento interessante é escolher um poema, manter sua estrutura e suprimir alguns versos ou palavras para que as crianças completem com aquilo que considerem mais interessante.
Em geral, as crianças possuem uma liberdade criadora e uma capacidade de lidar com palavras e idéias que muitos adultos perdem com a aprendizagem formal da língua. Assim, se elas forem sensibilizadas quanto ao ritmo, sonoridade e surpresas de um bom texto poético e sua criatividade não for cerceada, elas costumam nos surpreender com belos textos.
A escolha dos poemas para as paráfrases deve ser bem criteriosa, pautada em produções que as crianças conheceram ao longo do projeto e passaram a apreciar e, cuja temática possibilite a elas expressarem suas próprias referências.
Para encerrar, sempre reserve tempo para que as crianças apreciem suas releituras, permitindo que declamem seus empréstimos poéticos.
Bom trabalho!